quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"Desvendando Palavras"



Histórias da velha Arigó
Ariadne Araújo
O causo que eu vou contar agora mudou a minha vida para sempre. E da minha família também. Até aquela época, com apenas oito anos de idade, eu vivia uma vida calma numa pequena cidade de serra de nome Baturité, no meu Ceará. Eu era uma meninota cheia de saúde, alegre e festejada por todos pela cara de anjo que Deus me deu com olhos azuis e um cabelo louro cacheado. Mas meu pai, um agricultor da região, caiu em desgraça. De repente, perdeu toda a safra com a seca que, de tempos em tempos, expulsava gente para a Capital ou outras regiões do País. Naquele ano, nos idos de 1910, depois de mais um prejuízo, ele resolveu que chegara a nossa vez de ir embora.
O destino escolhido era o distante Acre, na fronteira do Brasil com outros dois países, a Bolívia e o Peru. Igual ao de milhares de outros nordestinos na mesma situação, dispostos a arriscar tudo ou nada no Norte do País, nas imensidões e perigos da floresta Amazônica.
De tão pequena, muita coisa perdeu-se na minha memória. Mas alguns episódios nunca mais vão se apagar. O dia da partida, por exemplo. No antigo porto de Fortaleza, no bairro por nome Iracema, a gente tinha a imensa visão do mar e, lá longe, da grande embarcação que nos levaria para longe. Mas, do alto da ponte de ferro onde esperávamos o embarque, era difícil imaginar de que forma chegaríamos até o navio, cujo apito alto mandava o aviso nervoso de que já era tempo de partir. Mas logo, logo saberíamos a resposta.
Com o apito, o negócio era apressar a partida. Os adultos desciam por conta própria até o bote que nos levaria ao navio. Mas, na nossa vez, o tratamento era o mesmo dado às cargas. Para não perder tempo, cada um de nós, pequeninos, era jogado da ponte metálica para o bote onde os pais e familiares tratavam de segurar o vôo ainda no ar.
Mas, antes da minha vez, o arremesso de uma criança não deu certo. No bote, o homem não conseguiu alcançá-lo a tempo e o menino acabou batendo a cabeça e caindo no mar.
Morreu na hora. Diante de nós, em meio ao terror daquela cena, as ondas gigantes mostravam que o risco de morte estava apenas começando. .
Nos interiores da Amazônia, meu pai foi trabalhar como seringueiro, entrando pelo território da Bolívia, tirando o sustento da extração do leite branco das seringueiras, as enormes árvores de onde se tirava o látex para fazer a borracha. Nossa família foi morar nas margens de um igarapé. No meio das árvores, da vida na selva, a gente sabia que havia perigos por todos os lados. Um deles eram as patrulhas de bolivianos que andavam na área expulsando os brasileiros. Uma noite, nós já estávamos todos dormindo, um desses grupos chegou. No comando dessa patrulha, uma mulher boliviana.
A notícia era que onde eles passavam era morte certa. Mas, se isso era mesmo verdade, naquela noite fomos salvos por uma espécie de milagre. Armas nas mãos, a patrulha prendeu toda a minha família, mas a chefe me viu e se encantou comigo, com meu cabelo loiro, com meus olhos azuis, algo nunca visto por aquelas bandas, naqueles tempos. Ela perguntou o meu nome, passou a mão sobre minha cabeça e disse ao meu pai que me levasse dali para o mais longe possível. Depois, foi embora sem nos fazer mal algum.
Lembro que foi exatamente isso que meu pai fez. No dia seguinte, cedo da manhã, a família fez a mudança. Fomos morar numa área habitada por muitos outros brasileiros, já dentro do território do Brasil, onde estaríamos em segurança. Muitos anos mais tarde, quando meu pai morreu, eu, já adulta, voltei para a minha terra de nascença. Mas nunca poderia esquecer estas coisas que eu conto agora para os meus netos. Uma história cheia de riscos e de aventuras. A história da minha vida. Da minha família. Também dos primeiros trabalhadores que povoaram a Amazônia brasileira no começo do século XX.
Texto de Ariadne Araújo, jornalista cearense, escrito com base no depoimento de Edilberto Cavalcanti Reis, neto de Alice Augusta Peixoto Cavalcante, narradora-personagem dessa história.

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Leia, a seguir, o trecho do livro Transplante de menina, de Tatiana Belinky.

 [...] Na Avenida Rio Branco, reta, larga e imponente, embicando no cais do porto [...] tivemos a nossa primeira impressão - e que impressão! - do carnaval brasileiro. [...] O que nós vimos, no Rio de Janeiro, não se parecia com nada que eu pudesse sequer imaginar nos meus sonhos mais desvairados. [...]
Aquelas multidões enchendo toda a avenida, aquele corso - desfile interminável e lento de carros, pára-choque com pára-choque, capotas arriadas, apinhados de gente fantasiada e animadíssima. Todo aquele mundaréu de homens, mulheres, crianças de todos os tipos, de todas as cores, de todos os trajes - todos dançando e cantando, pulando e saracoteando, jogando confetes e serpentinas que chegavam literalmente a entupir a rua e se enroscar nas rodas dos carros... E os lança-perfumes, que que é isso minha gente! E os "cordões", os "ranchos", os "blocos de sujos" - e todo o mundo se comunicando, como se fossem velhos conhecidos, se tocando, brincando, flertando - era assim que se chamavam os namoricos fortuitos,. a paquera da época -, tudo numa liberdade e descontração incríveis, especialmente para aqueles tempos tão recatados e comportados...
[...] Vi muitos carnavais daquele, participei mesmo de vários, e curti-os muito. Mas nada, nunca mais, se comparou com aquele primeiro carnaval no Rio de Janeiro, um banho de Brasil, inesquecível...
Tatiana Belinky: Transplante de menina, São Paulo, Moderna, 2003, pp. 101-103.

Tatiana Belinky nasceu na Rússia. Aos dez anos, emigrou para o Brasil, onde mora até hoje. É considerada uma das maiores escritoras de nossa literatura infanto-juvenil. Em seu livro transploante de menina, ela narra memórias de sua terra natal, a viagem para o Brasil, as primeiras impressões, sua infância e juventude no novo país.

Após a leitura do texto reflita e responda sobre as questões: 

O que a autora rememora?

Por que ela o considera marcante?

Atenção!!!Ao contar o que viu, Tatiana usa e abusa da descrição. Com riqueza de detalhes, descreve a Avenida Rio Branco, o desfile dos carros, as multidões, a forma como se vestiam. Não esqueça:
Para fazer uma boa descrição é importante reparar no objeto descrito como se olhássemos pela primeira vez. devemos trazer à lembrança sensações, impressões e informações captadas pelos nossos sentidos: cheiros, sabores, formas, cores texturas, sons.A descrição pode ser utilizada como recurso para envolver o leitor e aproximá-lo ainda mais da experiência trazida pelo autor do texto.