terça-feira, 31 de julho de 2012

Atividades de leitura


Minha vida de menina

Quarta-feira, 28 de agosto [de 1895].

Faço hoje quinze anos. Que aniversário triste!
Vovó chamou-me cedo, ansiada como está, coitadinha, e deu-me um vestido. Beijou-me e disse: “Sei que você vai ser sempre feliz, minha filhinha, e que nunca se esquecerá de sua avozinha que lhe quer tanto”. As lágrimas lhe correram pelo rosto abaixo e eu larguei
dos braços dela e vim desengasgar-me aqui no meu quarto, chorando escondida.
Como eu sofro de ver que mesmo na cama, penando como está, vovó não se esquece de mim e de meus deveres e que eu não fui o que devia ter sido para ela. Mas juro por tudo aqui nesta hora que vovó melhorando eu serei um anjo para ela e me dedicarei a esta avozinha tão boa que me quer tanto.
Vou agora entrar no quarto para vê-la e já sei o que ela vai me dizer: “Já estudou suas lições? Então vá se deitar, mas procure antes alguma coisa para comer. Vá com Deus”.
                                                                           Helena Morley. Minha vida de menina.
                          São Paulo: Companhia das Letras. Publicado em 1942, aos 62 anos.

Helena Morley, pseudônimo usado por Alice Dayrell Caldeira
Brant. A autora nasceu em Diamantina, em 1880, e faleceu
em 1970, no Rio de Janeiro.
O diário de Helena Morley foi escrito no século XIX, ao longo
de três anos, e publicado quarenta e sete anos depois, com
o título Minha vida de menina.
histórico
Mercador de escravos

Quando eu morei na Nigéria, ouvi de vários descendentes de ex-escravos retornados
do Brasil que seus antepassados trouxeram consigo um saquinho de ouro em pó. E que os menos afortunados desembarcavam em Lagos com os instrumentos de seu ofício e alguns rolos de tabaco, mantas de carne-seca e barriletes de cachaça, para com eles reiniciar a vida. É provável que tenha sido também assim, com seu contrabando de ouro ou o seu tanto de fumo e jeritiba, que alguns dos traficantes brasileiros instalados no golfo do Benin começaram os seus negócios.
Não foi este, porém, ao que parece, o caso de Francisco Félix de Souza. A menos
que estivesse mentindo quando disse ao reverendo Thomas Birch Freeman que chegara
à Costa sem um tostão e que foram de indigência os seus primeiros dias africanos – confissão corroborada por um parágrafo de Theophilus Conneau, no qual se afirma que Francisco Félix começou a carreira a sofrer privações e toda a sorte de problemas. Outro contemporâneo, o comandante Frederick E. Forbes, foi menos enfático, porém claro: Francisco Félix era um homem pobre quando desceu na África.
Que ele tenha, de início, como declarou, conseguido sobreviver com os búzios
que furtava dos santuários dos deuses não é de estranhar-se. Os alimentos eram muito baratos naquela parte do litoral. Numa das numerosíssimas barracas cobertas de palha do grande mercado de Ajudá, recebia-se da vendedora, abrigada sob o teto de palha ou sentada num tamborete atrás do trempe com seu tacho quente, um naco de carne salpicado de malagueta contra dois ou três cauris.
Custava outro tanto um bocado de inhame, semienvolto num pedaço de folha de bananeira e encimado por lascas de peixe seco. E talvez se obtivesse por uma só conchinha um acará.

Alberto da Costa e Silva. Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira/Editora da UERJ. Publicado em 2004, aos 73 anos.
Nesse relato histórico, o autor procura reconstituir a vida de uma personagem
importante da história do Brasil, Francisco Félix, o Chachá, um
mercador de escravos. Os fatos relatados por Alberto da Costa e Silva
são fruto de investigações que ele realizou ao longo de quase sessenta
anos. Observe que embora inicie esse segundo capítulo do livro mencionando
uma experiência vivida por ele, logo em seguida o autor passa a
relatar fatos e informações relativas à personagem sobre a qual escreve.
Ele é um observador da história de Chachá.


Por parte de pai

Minha cama ficava no fundo do quarto. Pelas frestas da janela soprava um vento resmungando, cochichando, esfriando meus pensamentos, anunciando fantasmas. As roupas, dependuradas em cabides na parede, se transfiguravam em monstros e sombras. Deitado, enrolado, parado imóvel, eu lia recado em cada mancha, em cada dobra, em cada sinal. O barulho do colchão de palha me arranhava. O escuro apertava minha garganta, roubava meu ar. O fio da luz terminava amarrado na cabeceira do catre. O medo assim maior do que o quarto me levava a apertar a pera
de galalite e acender a luz, enfeitada com papel crepom. O claro me devolvia as coisas em seus tamanhos verdadeiros. O nariz do monstro era o cabo do guarda-chuva, o rabo do demônio o cinto do meu avô, o gigante, a capa “Ideal” cinza para os dias de chuva e frio. Então, procurava distrair
meu pavor decifrando os escritos na parede, no canto da cama, tão perto de mim. Mas era minha a dificuldade de acomodar as coisas dentro de mim. Sobrava sempre um pedaço...
                                                                                                                     Bartolomeu Campos Queirós. Por parte de pai.
                                                                                                                     Belo Horizonte: RHJ, 1995. Escrito, aos 46 anos.
Bartolomeu Campos Queirós dedica seu livro Por parte de pai ao registro
literário de suas recordações de menino. Portanto, um livro de memórias
literárias. Como vimos nesse trecho do livro de Bartolomeu, é comum
encontrar em textos de memórias literárias — o autor como personagem-
narrador da história. Ele tomou como ponto de partida experiências
que viveu quando criança, mas não se prendeu a elas. Ao recriar seu
passado, procura transportar os leitores para o tempo e para o espaço
onde ocorreram os acontecimentos narrados.